"Nasceu e cresceu em Aldoar, no Porto. Cristina (nome fictício) é técnica administrativa e mãe de uma filha de 20 anos. Foi casada durante 18. Vive, desde que abandonou a casa comprada pelos dois, em apartamento alugado.
Recuando no tempo, garante que a violência, movida pelo vício do álcool, começou no início do casamento. Lembra-se que o rapaz com quem casou evidenciava, no tempo de namoro, alguns sinais de agressidade, mas não chegara a vias de facto. Até ao casamento. Porque logo na lua-de-mel, na Costa da Caparica, surgiram os primeiros bofetões. Mas Cristina acabara de perder os pais e estava bastante fragilizada. Deixou correr. Admite, no entanto, que "as chamas do inferno começaram aí e nem atenuaram durante a gravidez. Eu curvava-me toda, para ele não bater na barriga..."
De dia para dia, a situação piorava, sobretudo a partir do momento em que decidiu não ter relações sexuais com o marido. "Como é que eu poderia estar com um homem que só estava bem a bater-me? Isso fazia-me uma confusão muito grande. Nunca tinha feito nada de mal. Nem os meus pais me bateram quando era criança...".
Sentia-se cada vez mais só, perdida e notava que lhe escasseavam as forças para dizer basta! Mas as agressões constantes apareciam e Cristina foi-se, dia a dia, anulando. O marido revelava ciúmes de tudo e todos, chegando mesmo a obrigá-la a abandonar o emprego. Acatou a "ordem" para não arranjar mais problemas, sempre na esperança de que, com o nascimento do filho, a situação melhorasse. Mas não, os empurrões, as bofetadas e os muros continuavam. E "até me batia à frente da mãe dele e do pai" - acrescentou, garantindo que o ex-marido sempre teve o apoio da família. Ao contrário dela, que ficou muito cedo sem os pais.
Para os sogros de Cristina, as agressões eram encaradas com a maior normalidade do mundo. Recorda, como se fosse hoje, a ocasião de uma cena de pancadaria em que ele a arranhou em várias partes do corpo e a mãe, toda cerimoniosa, advertiu o filho: "Nunca a deves marcar, porque a partir daí as pessoas vão perguntar o que se passou". O filho parece ter apreendido a lição e desde aí tentou bater em sítios que não a marcassem visivelmente.
Quando a criança cresceu, Cristina conseguiu uma "vitória": voltar a trabalhar, pois o dinheiro nunca abundou e, sempre que precisava de alguma coisa para a casa, tinha quase de se "pôr de joelhos". Mas com o emprego seguiu-se um "rosário" de problemas. Os ciúmes ao rigor nos horários de chegar a casa. "Não me podia atrasar, tinha de correr porque se não já sabia que levava porrada da grossa. Quantas vezes apanhei trânsito e saía do autocarro e punha-me à estrada a pé, com medo. Tinha medo de levar..."
De noite, cansada, ele não a deixava dormir e obrigava-a a estar acordada. "Quantas vezes tive de andar à volta da mesa para não adormecer, para ele não me bater, quantas vezes..."
Confidencia que passava imensas horas a magicar como haveria de se livrar daquilo. Mas ninguém a ajudava. Os vizinhos ouviam a gritaria, mas ninguém chamava ninguém, nem a Polícia. "Ouviam-me a chorar, a gritar, mas nunca fizeram nada, nada..."
Nunca fez queixa. Gostava, mas tinha medo que se agravassem as cenas. Lembra-se de uma vez ter levado a filha à escola e a professora ter reparado nas negras marcadas no rosto. "Ela reparou, entendeu bem, mas nem ela me ajudou. Mais tarde, vim a saber que a família aconselhou-a a não envolver-se nisso. É a tal história de 'entre marido e mulher não metas a colher'. É um dispatate, se ela tivesse feito alguma coisa, provavelmente tinham-me poupado a muitas tareias".
A partir de uma determinada altura, Cristina confessa que o seu casamento estava mesmo no fim. Era só fachada. Não havia amor e quase nem se falavam. "Aliás, em matéria de diálogo, eu não podia dizer nada. Se estavamos a ver televisão, o telejornal, por exemplo, e se eu dava uma opinião qualquer, ele automaticamente contrariava. Não podia saber mais do que ele. Se eu mostrasse que sabia mais, a noite acabava em tragédia. Portanto, o melhor era fingir que não sabia e estar de boca calada. Era uma anulação completa..."
E tudo piorava, ano a ano. A situação económica da casa degradou-se, porque o marido começou a contrair dívidas, a beber e a esquecer-se de ir trabalhar no dia seguinte. Chegou mesmo a recusar ir trabalhar e, a partir daí, revela Cristina, "já não se importava que eu fosse trabalhar. Aí, o que queria era que eu trouxesse o dinheiro do meu ordenado ao fim do mês e lhe pagasse os uísques e o vinho".
Confessa que ainda tentou ajudá-lo a libertar-se do alcoolismo, mas depressa concluiu que o marido não queria realmente mudar de vida. "A partir de determinada altura, habituou-se a estar em casa e só saía à tardinha para os copos. Fui aguentando, mas com os copos continuavam cada vez mais as agressões"- sublinhou.
Um dia, num fim de tarde de Inverno, reparou que a filha estava muito nervosa e evidenciava comportamentos estranhos. Por isso, conseguiu levá-la ao pedopsiquiatra. "O médico facilmente descobriu que as cenas de violência que a criança presenciava afectavam-na gravemente. Nesse mesmo dia, jurei que a minha filha nunca mais assitiria a uma cena daquelas." E, no dia seguinte, fez as malas e nem as chuvas fortes a impediram, de, juntamente com a filha, abandonar a casa. Em busca de uma vida sem violência."
E onde é que eu já VIVI isto ???