sexta-feira, março 31, 2006

Cicatrizes


Ela olha-se no espelho enquanto escova os cabelos. Tem muito tempo marcado no rosto, lembranças, passado. Tem algumas cicatrizes perto da boca que o espelho não mostra, de palavras que disse, ásperas, duras, expurgando demónios.Que espelho é esse, meu Deus, que não lhe mostra nada e lhe devolve em pedaços? Ela vira-se... mas ainda vê... perto destas cicatrizes pequenas, há outras, maiores, que a insônia sempre redimensiona...estas, das palavras que não disse, as que engasgam em cada tropeço de felicidade, palavras que pensou, projectou, sentiu e trancou na boca, formando sulcos... Num milésimo de segundo lembra da sensualidade de algumas palavras... e no impulso da hora, tira a roupa. Se olha inteira, crítica, através...
Por que o espelho não lhe dá aquele talho na perna? O que há com estes espelhos? Mas o talho esta lá, ela pode sentir... ele fez-se daquela vez em que não obedeceu ao impulso de partir, não ouviu sua vontade de caminhar ao encontro do que achava, ainda, possível... e sempre que escuta as velhinhas na calçada, dizendo que vai chover, seu talho arde, como um reumatismo precoce, cobrando os atalhos que usou e os caminhos que não conheceu... Seu corpo é bonito... ainda lhe presenteia sensações, energia... aquela sensualidade crua faz-lhe visitas...Afasta os cabelos da testa... na mão uma queimadura discreta. Onde foi que a ganhou mesmo? Não se lembra. São tantas marcas.
Se olha de novo...sorri sem querer... Ela está ali, a cicatriz do parto, do que permitiu nascer, do que deu a vida. Uma cicatriz bonita, que lembra uma criança correndo pela casa, soltando gargalhadas. E então, veste-se, num ritual vagaroso e apreciativo. Em cada marca mora um pedaço dela: pequeno, grande, estriado, não importa... e em cada um ela se exibe.
Afinal, o que há com estes espelhos?

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